25/01/2013

ciclo

a morte da fome deu sede.
a morte da sede deu sono.
a morte do sono deu nova energia.
(mas a internet matou a energia)
a morte da energia deu fome.
a morte da fome deu sede...

25/08/2010

feira

como os pombos se deliciam com as sobras pelo chão.. não fossem tão cheios de doenças, eu diria que são extremamente agradáveis.
gosto de observar as pessoas trabalhando e fazendo compras. a alegria dos japoneses donos da banca de legumes, as crianças arrastando os pais para a barraca de pastel, a senhora idosa que toda 5ª feira compra bananas - o médico recomendara potássio para os músculos.
quero ser tão alegre e simpática quanto ela, quando chegar na 3ª idade. e levar meus netos para a feira, comprar pastel para eles, e levar algumas postas de peixe, e sentir o sol no rosto. tão agradável..
5ª é o dia mais feliz da semana. como é bom morar bem na frente da feira livre...

23/05/2010

a missão

ela balançou, suave
madura que até perfumava o jardim
onde há tempos fazia moradia
caiu, tão leve
rolando feito feno
depositou-se na grama macia
úmida, de um lindo verde
mas não ficou muito tempo ali
foi matar a sede da pobre mulher
que minutos atrás
exausta com seu carrinho cheio de papelão
pediu em sincera oração:
Senhor, dê-me água.

15/05/2010

o susto

subiu as escadas. tudo escuro. um barulho no quarto. o coração acelerou. havia deixado trancado!
continuava assim. mas o que...
abriu de leve a porta e quase morreu de susto. um vulto preto pulou sobre seus ombros e continuou a correr, desceu as escadas e foi pro quintal.
deixara o gato preso o dia todo sem querer. o pobre devia estar faminto.

07/04/2008

hippies

jhonni rivers ouvíamos
mais uma conta, o nó no fecho, queimar
pessoas param, olham, se vão
o dia passa, uns trocados entram
mais uma dose ?
não, não bebo
o incenso acabou, acende outro
torce o fio, outra conta, arremate
ele vivem aqui e ali
nômades de dreads
conheci-os por acaso
"vem olhar um colar, princesa"
era um escultor, uma artesã, um pintor
em segundos as mãos ágeis
fabricavam sonhos pequeninos
e agora que se foram
para outra cidade, quem sabe
os domingos tem sido cinzentos
nômades de dreads
me ensinaram a trançar
torcer o fio, queimar
acabou-se o incenso
acendo outro e penso
nos hippies companheiros
em seus fios, contas, isqueiros

30/03/2008

Lila

"ela chora de alegria quando nos recebe em sua casa.
moramos a quase 400 km de lá, então a vejo no máximo uma vez por ano.
Lila viu minha mãe crescer. Foi uma boa vizinha e amiga, e até hoje sua dedicação se faz notar. Nos seus olhos, suas lágrimas e no café que faz com tanto gosto enquanto nos obriga a sentar e conversar.
tudo em seu lar é tão humilde e, ao mesmo tempo, tão acolhedor. Desde a mesa de toalha plástica xadrez ao bolo de fubá orgânico, maravilhoso.
quando vou para lá me sinto tão bem ... Até seus cachorros acompanhando o amor e a hospitalidade da dona, nos recebem aos pulos e lambidas. As árvores de seu jardim perfumam o ar e enfeitam a vista da humilde casinha de tijolos desgastados, e chão de cera vermelha.
o fogão a lenha, o bule ao invés da garrafa térmica, o relógio de parede barroco, barulhento, com pesados pêndulos em forma de banana, cor de bronze.
Acho que consigo entender por que me sinto tão bem por lá: Lila é a pessoa de quem me lembro com mais ternura, agora que minhas visitas à pequena cidade de Bernardino de Campos se tornaram mais raras.
E, de tudo, o que mais me marcou foi seu amor ao nos receber todas as vezes que estivemos por lá. beijos carinhosos no rosto e os apertões nas minhas bochechas: "Que lindeza, como ela cresceeeeeu, mariinha !!" (minha mãe se chama Maria).
Lila masca carvão, não sei dizer porquê. está sempre de chinelos de dedo e aquele vestido florido, paupérrimo... Os olhos azuis, lacrimejantes, denunciam o peso da idade, a saúde já indo embora ...
mas Lila é a pessoa mais amorosa que já conheci.
e eu não me sentiria tão confortável instalada num hotel de luxo a degustar caviar como me sinto em sua casa, com os cachorros roçando minhas pernas por debaixo da mesa e me matando de susto, e o cheiro do café fresco, passado em coador de pano e servido com bolo de fubá na mesa de toalha xadrez. "

23/01/2008

maria compulsiva

Maria era perfeccionista. Ao extremo.
Seus pertences ela mantinha muito bem protegidos contra bactérias e bastava um de seus filhos demorar um pouco para ir até a cozinha para servir-se do jantar e ela já esbravejava:
"Se não vier logo, sua comida vai ficar infestada de ácaros!"
Eles tentavam explicar para ela que os ácaros estão por todos os lugares, em cada metro cúbico do ar e que independente de comerem a comida calmamente ou engolirem tudo de uma vez como se fosse água, na tentativa de não deixá-los tocarem nela, os bichinhos já estavam ali antes da comida ter sido posta no prato.
Mas era inútil. Maria se achava a dona da verdade. Só ela era perfeita e só o que ela dizia era correto.
Os dois filhos sofriam de rinite alérgica porque ela nunca deixou eles brincarem como crianças comuns. Sempre limpando e higienizando as mãos de ambos, jamais permitira que eles andassem descalços por aí. Brincar de fazer bolinhos de terra, nem pensar. Andar com a roupa suja ou sentar nas calçadas, tampouco.
Mania de limpeza doentia.
Não teve paciência para ensiná-los a cozinhar e a fazer outros serviços domésticos e eles também perderam a vontade de aprender, sob as constantes acusações de incompetência e desleixo que recebiam por parte dela. Eles não eram perfeitos. Mas ela era. Ou melhor, jurava ser.
Sua filha desistira de tentar agradar, não havia quem fizesse tudo à sua maneira, a comida perfeita e a limpeza impecável. Maria se achava realmente uma divindade.
Como seu marido e filhos não eram perfeitos, Maria servia a comida dos três, pois segundo ela, nem isso eles sabiam fazer direito. Eram uns inúteis.
Maria só não mastigava a comida para eles porque é falta de higiene. Lembrem-se: os ácaros.
O tempo passou e Maria ficou idosa. A saúde já não era a mesma. A contragosto, precisou aceitar a ajuda doméstica dos três incompetentes. A confusão teve início.
Arroz sem sal, prendedores encharcando-se de chuva nos varais, o alho picado em pedaços gigantes, bolo de fubá murcho!
E Maria ficou com gastrite nervosa, de tanto ver coisas erradas à sua volta. Já seus filhos e marido pareciam um pouco mais felizes, talvez por agora terem a liberdade de poder fazer tudo com as próprias mãos, após anos sob a unha da mãe repressora.
Um dia Maria adoeceu e veio a falecer. Sua família sofreu bastante, porque ela era uma pessoa muito amável em seus raros momentos "sóbrios".
Enquanto era velada a cidadã perfeita, o seu espírito vagava entre eles.
"Meu Deus! Escolheram a roupa mais feia para me vestir no caixão! Que vergooooonha!! Eu pego quem fez isso!!"
"E você, seu Nilton? Dona Vânia não passa as suas camisas, não? Poderia vestir algo menos amarrotado para vir ao meu funeral!!!"
"Essas coroas, tão mal-feitas, decoração simples demais, caixãozinho feio, hein? É assim que me pagam por anos de amor e dedicação?"
"Mas nem passaram um pano no chão!! Olha essas janelas carregadas de pó!! Será que não há mais faxineiros neste velório municipal?"
Já no cemitério, Maria observava tudo, flutuando logo acima dos seus.
"Que luvas imundas e surradas esses coveiros usam! E esse uniforme vergonhoso? Mas eu vou ter que falar com o prefeito!! Providências, meus senhores! Urgente!"
O enterro acabou e Maria aproximou-se do túmulo para verificar tudo, e desgostar-se ainda mais.
"Não necessito de uma trena para ver que este vasinho de porcelana foi posto mais para direita do que para a esquerda."
Tentou endireitá-lo mas suas mãos passavam através dele, como se ele fosse apenas uma miragem, fruto de sua imaginação.
"Ah, José Valter, eu te pego!!" - Maria esbravejou furiosa.
Foi até sua casa em menos de 1 segundo. Ah, as vantagens de ser um fantasma...
Havia uma caixa de calmantes sobre a mesa e José dormia pesadamente, o retrato dela preso entre as mãos, no peito. Muitos lenços de papel espalhados pela cama, a denunciar o sofrimento, as lágrimas daquele que sempre a amou, apesar de suas neuroses.
"José!!" - gritou.
Nada.
Tentou empurrá-lo mas as mãos o atravessavam.
Maria foi ficando brava e pegou um castiçal.
"Consegui pegá-lo! Mas como?? Será que desta vez me concentrei mais?"
"Ah, então é isso, concentração, Maria..."
Mirou e ...
Toc !!!
José acordou com a cacetada na cabeça.
Maria batia o pezinho no chão, os braços cruzados, ainda segurava o castiçal.
Mas o viúvo tomara muitos calmantes e dormiu de novo.
"Raios, será que esse imbecil tomou a caixa inteira de comprimidos?"
Esperou impacientemente, até o dia seguinte.
José ainda dormia. Tentou mais uma vez acordá-lo.
Desta vez ele despertou. Ainda meio tonto, mas deu um pulo quando a viu.
Pálido de susto, mal conseguiu dizer abrir a boca e Maria já começou o discurso:
"Bonito, hein? Roupas mal-passadas na defunta, coroas hor-ro-ro-sas, velório imundo, coveiros mal vestidos e o meu vaso de violetas tor-to!!"
"Maria..."
"Nem uma palavra, venha comigo!!"
Arrastou-o até o carro.
"Vamos ao cemitério agora!! Ou você vai re-conhecer a minha ira, senhor José!!!"
No cemitério, com a fita métrica, José media a distância entre as extremidades da tampa do túmulo e o vaso. E ela marcava o local.
"Tá bom assim, Maria?"
"Não! Agora está posto mais para a esquerda!"
"E agora, Maria?"
"Quase."
Depois de 10 minutos finalmente eles conseguiram fazer o vaso ficar exatamente no centro do tampo de mármore.
"Agora cimenta, pra ninguém mover ele!"
"E não me deixa essas flores murcharem, regue-as sempre, hein, seu José?"
Maria deu um beijo nos lábios do marido e desapareceu, deixando-o só.
Foi até a casa.
Uma escada luminosa surgiu na janela do quarto e São Miguel a chamou:
"Venha Maria, sua missão acabou."
"Calma, anjo. Já vou."
Beijou os filhos e se foi. Um pouco chateada, porque os dois não haviam passado o aspirador de pó no carpete do quarto. Que aliás, estava uma bagunça.
"Vamos, Maria. Não seja teimosa."
"Não, não precisa me segurar, São Miguel, eu sei andar sozinha!"
Chegando ao céu, Maria reclamou das suas vestes, que apesar de serem de um branco como ela nunca vira antes, estavam folgadas demais. Pareciam uma camisola. E Maria sempre foi bem magra.
"Quem cuida disso por aqui? Quero outras vestes!"
Os anjos não acreditavam no que viam e ouviam.
"O que se passa aqui?" - disse Deus.
"Maria exige outras vestes, Senhor. Ela disse que seu vestido está parecendo mais uma camisola." - disseram os anjos em coro.
"Ah Maria, minha filhinha, já chega de me dar trabalho, não?" - respondeu o Senhor, rindo.
Deus tocou sua testa, curando-a para sempre de seu perfeccionismo e teomania. E Maria finalmente descansou em paz!
As vestes não foram trocadas. Maria apenas havia se esquecido de puxar para trás as delicadas fitas de cetim laterais e fazer o lacinho nas costas
. Ninguém é perfeito, não é?